Santa Maria tem vergonha da memória das vítimas do incêndio na Boate Kiss, que ganham sobrevida tanto materializadas em fotos na tenda da Praça Saldanha Marinho como na luta dos pais que buscam há sete anos justiça para o crime cometido na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Santa Maria tenta silenciar os pais e as manifestações públicas de amor pelos filhos perdidos porque tais lembranças “deixam a cidade feia”, expressão aqui colocada em aspas duplas que não são capazes de expressar a repulsa do autor pela crueldade destas palavras. A cidade repudia a presença destes pais na praça principal, afirmando que eles “não deixam os filhos descansarem”. Eu me pergunto quem em sã consciência consegue ser tão desumano e insensível à dor do outro? Escrevo porque acredito que a memória coletiva é uma maneira de combate ao silenciamento covarde, ao esforço atroz para fingir que o único lugar reservado para a tragédia é o de passado superado e inevocável em voz alta. E eu inconscientemente tenho contribuído quando por não falar muito sobre o assunto, deixo que o tempo corroa a minha memória e que ano após ano eu recorde cada vez menos do que aconteceu naquele dia e nos seguintes, dos horrores a partir da minha perspectiva e das pessoas que estavam comigo.
Durante minha habitual caminhada pelo campus aos domingos, no dia 27, parei para descansar e vi uma faixa pintada à mão promovendo a festa “Agromerados”. Minha testa franziu na hora por estranheza ao nome do evento. Peguei meu celular, abri o feed da rede social e comecei a ler pessoas falando sobre uma tragédia em Santa Maria. Até o momento, 6 ou 7 da manhã, eu sabia pouco sobre o acontecido e fiquei assustado com o número de mortes que li em uma notícia da Rádio Gaúcha: 90 pessoas. Apertei o passo em direção a minha casa, morava pertinho da universidade. A rua vazia, onde eu só ouvia os passos e pássaros, me dava esperança de que pudesse ser uma notícia falsa que se espalhou rápido. Cheguei em casa e a TV estava ligada, ecoando em alto e límpido som pela cozinha: “130 mortos”. Nesse momento meu celular tocou com a primeira ligação preocupada. Mensagens começaram a chegar de pessoas que eu jamais imaginei que se preocupariam comigo. O número de mortos aumentava, Santa Maria caminhava para o holofote da mídia internacional e eu para a incredulidade.
Na época eu morava embaixo da rota de pousos e decolagens da Base Aérea de Santa Maria, no extremo leste da cidade, o que me fez presenciar um dia de incessante fluxo de aviões e helicópteros que cortavam o céu carregando pessoas em estado gravíssimo para Porto Alegre, emitindo sons que na minha cabeça eram quase um ensaio de marcha fúnebre. Eu inutilmente buscava o isolamento porque não suportava mais as atualizações que traziam cada vez mais e mais mortos. Torcia pra que nenhuma pessoa próxima ou do meu convívio estivesse envolvida. Em vão. Saí de casa para tentar espairecer e a onipresença inebriante da morte se manifestava no assustador silêncio de pessoas em constante movimento e feições desoladas. Não lembro se consegui almoçar. Mas lembro de no fim da tarde ficar em choque ao presenciar o velório de uma vítima no CTG ao lado da minha casa. O número 200 chegou aos meus ouvidos e permaneci atônito. Eu tinha 18 anos na época e o fato da maioria das vítimas ter por volta da minha idade contribuía para que eu me imaginasse a todo instante “e se fosse minha mãe recebendo a notícia de que o filho dela estava na boate?”. O resto do dia foi quase completamente apagado da minha memória. Lembro da busca angustiante por informações e a tentativa de ajudar as pessoas próximas por mais impotentes que todos nós nos sentíssemos. O dia amanheceu e o RU (Restaurante Universitário) abriu para o café e eu estava lá praticamente sem ter conseguido dormir a noite toda. Uma das cenas que mais me marcaram foi uma moça que enquanto tomava o café sozinha com os cotovelos apoiados na mesa, levou a colher até a boca, recuou, devolveu a colher à xícara e entrou em colapso num dos choros mais difíceis que já assisti. Eu podendo fazer quase nada pois sabia o que estava acontecendo. Nos dias seguintes, pude presenciar o melhor e o pior de pessoas próximas e desconhecidas.
242 pessoas foram assassinadas em circunstâncias que remontam às câmaras de gás de campos de concentração nazistas. A queima do revestimento interno da boate liberou cianeto - princípio ativo do pesticida Zyklon B usado por nazistas para executar prisioneiros durante a 2ª Guerra Mundial e que é um dos venenos mais letais que existem - causando morte quase imediata por impedir a produção de energia pelas células do corpo humano. Mais de 600 sobreviventes ainda são acompanhados para adaptarem suas vidas às sequelas decorrentes da inalação da fumaça gerada pela queima do material de isolamento acústico irregularmente instalado na casa noturna. Sequelas graves que comprometeram a suficiência respiratória de quem conseguiu escapar quase inconsciente. Sequelas que comprometeram pele e músculos de quem saiu em “carne viva” de dentro da boate, tão inebriado pela nuvem preta e densa que nem percebia seu corpo se esfacelando na frente dos seus olhos. Sequelas psicológicas afetaram muito mais do que os 600 sobreviventes. Pais, irmãos, tios, avós e amigos que tiveram o pior domingo de suas vidas e que ainda tem seu sono e vigília assombrados por ele. Ninguém deveria lidar com a brutalidade inominável que é uma pessoa querida sendo carregada sem vida num caminhão frigorífico, coberta de fuligem e depois enfileirada junto a outros cadáveres num ginásio esportivo. Não sei se existem palavras que possam ser ditas a mães e pais que tiveram a força de procurar por notícias, reconhecer seus filhos no meio daquele cenário de guerra e ainda fazer velório e sepultamento em cerimônias coletivas. Quantas famílias desmoronaram, levando a rompimento de vínculos, desenvolvimento de doenças mentais e tentativas de suicídio. A miséria da existência que faz a gente repensar muitos valores e convicções.
Em 2019, eu trabalhava em uma instituição localizada no mesmo quarteirão da Boate Kiss e por algumas vezes eu passava na frente da fachada da boate para ir em direção à minha parada de ônibus. Em algumas destas vezes desviava o olhar. Quando não desviava, quase não acreditava em tudo o que aconteceu ali alguns anos antes. Talvez por ser perturbadora a conversão de tanto sofrimento em materialidade de alguns metros quadrados cercados por tijolos e concreto.
No primeiro ano da tragédia, a população santamariense comparecia em peso às manifestações na rua, que mostravam que o que aconteceu na cidade jamais seria esquecido e que o poder público estava sendo cobrado por sua responsabilidade. Lembro até hoje das manifestações de junho de 2013 em todo Brasil, que tinham como ponto de partida comum a insatisfação com o aumento da passagem de ônibus, mas também carregavam consigo o clamor de alguma demanda local e mais tarde culminaram na ascensão da extrema-direita brasileira. Em Santa Maria as manifestações eram pelo preço da passagem sim, mas eram mais do que isso: a reivindicação por justiça em memória às vítimas do incêndio. Nos anos seguintes, continuamos a lembrar cada dia 27 de janeiro. Cada notícia sobre o processo criminal nos chamava a atenção. Mas com o passar do tempo, a inquietude da população e a necessidade de justiça foram se esvaindo até chegarmos em eventos absurdos de desrespeito às famílias, como o vandalismo contra a tenda na Praça Saldanha Marinho e os impropérios jogados irresponsavelmente sobre os pais. O maior desrespeito é do poder público que estendeu o processo criminal por mais quase 8 anos e recém no fim do ano retrasado definiu a data de julgamento dos principais réus, empresário e sócio da boate e integrantes da banda (um deles que acionou o artefato pirotécnico dentro da casa noturna). Além da demasiada espera imposta ao pais, no decorrer do processo, alguns deles foram processados pelo ministério público que deveria lhes dar uma resposta, não um tapa na cara.
Logo depois do incêndio e seus desdobramentos, a população jovem de Santa Maria começou a se preocupar mais com a segurança dos lugares que frequentava. Leis de prevenção a incêndio foram alteradas no Rio Grande do Sul inteiro. Hoje essa preocupação me parece novamente não ser prioridade. Empresas e estabelecimentos ao invés de prezarem pela segurança dos frequentadores, reclamam da dificuldade para a obtenção de um alvará e apelam para uma possível perda econômica para a cidade. Santa Maria desaprendeu rápido o que o incêndio da maneira mais dura pôde ensinar. Por isso, o mínimo que podemos fazer pela memória das vítimas, por respeito às famílias e para que uma tragédia humana como o incêndio na Kiss não se repita é mantê-lo em nossa lembrança, discurso e ações.